domingo, 7 de dezembro de 2008

Chamados a "ouvir duas vezes"- John Sttot

A principal razão para toda traição ao verdadeiro Jesus é que nós ouvimos com exagerada deferência a moda contemporânea, ao invés de escutarmos a Palavra de Deus. A busca por relevância torna-se tão impetuosa que nós sentimos que temos que capitular diante dela, independente do custo. Estamos acostumados a esse tipo de pressão no mundo dos negócios, onde quem determina o produto da firma são os especialistas em marketing, ao descobrirem o que irá vender, o que o público irá comprar. Às vezes parece que o mercado impõe sua regras também à igreja. Com toda prestatividade, nós cedemos ao espírito moderno, tornando-nos escravos da última moda, e até mesmo idó­latras, dispostos a sacrificar a verdade no altar da mo­dernidade. Então a busca por relevância acaba se degene­rando, transformando-se em uma obsessão por populari­dade.
O outro extremo da irrelevância é a acomodação, que é uma covarde e inescrupulosa rendição ao Zeitgeist, o espírito da época. Thielicke foi assaltado por esse perigo, pois ele não conseguia esquecer como é que os assim cha­mados "cristãos germânicos", durante o Terceiro Reich de Hitler, aceitavam e até defendiam os mitos raciais dos nazistas. Ele insistia, portanto, em que a verdadeira teo­logia "sempre implica num debate entre o kerygma e a autocompreensão de uma era... entre a eternidade e o tempo". Ademais, nesse debate "a fé acredita tanto contra como em"; ela nasce em uma reação consciente a idéias correntes. Assim, Thielicke escreve sobre a "estrutura polar" da teologia, na qual um polo é "uma base eterna e superior que se deriva da revelação" e o outro é cons­tituído de "constelações específicas do espírito da época". "A fé", insiste ele, "sempre será um risco ... ela há de implicar, não um porquê, mas um apesar de em face da realidade do humano."
Da mesma forma, Peter Berger, como sociólogo cristão, tem algumas coisas pertinentes a dizer acerca da neces­sidade de se caminhar cautelosamente entre a irrelevância e a acomodação:
Eu gostaria de esclarecer uma vez mais que não estou dizendo que os cristãos não deveriam ouvir as idéias dos outros, ou levar a sério o que acontece no seu contexto cultural, ou participar de lutas políticas do seu tempo. O que me perturba não é o fato de se ouvir como tal, mas, sim, o fato de ouvir com adulação acrítica, se não intenção idólatra — de ouvir, se é que se ouve, de olhos arregalados e boquiabertos de admiração.
E Peter Berger continua dizendo: "Eu acho que simples­mente chegou a hora de dar um 'Basta!' a essa dança em torno dos bezerros de ouro da modernidade." Mais im­portante do que indagar o que o homem moderno tem a dizer à igreja é perguntar o que a igreja tem a dizer ao homem moderno.
O povo de Deus vive num mundo que é frequentemente inamistoso e, certas vezes, declaradamente hostil. Nós vivemos constantemente expostos à pressão para "entrar­mos na forma". No entanto, através de toda a Escritura, somos exortados a uma firme não-conformação, e as ad­vertências para quem cede ao mundanismo são muito sérias. No Antigo Testamento o Senhor disse ao seu povo depois do êxodo: "Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus es­tatutos guardareis..." Mesmo assim o povo disse a Samuel: "... constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações." E, mais tarde, Ezequiel teve que repreendê-los por sua idolatria: "...dizeis: Seremos como as nações, como as outras gerações da terra, servindo ao pau e à pedra." Foi a mesma coisa nos dias do Novo Testamento. A despeito dos mandamentos bem claros de Jesus — "Não vos assemelheis a eles" - e de Paulo - "Não vos conformeis com este mundo" -, a constante tendência do povo de Deus era, e ainda é, com­portar-se "como os gentios" - até que nada mais parece distinguir a igreja do mundo, os cristãos dos não-cristãos, em convicções, valores e padrões.
Graças a Deus, porém, sempre houve algumas almas nobres que permaneceram firmes, às vezes sozinhas, re­cusando-se a se comprometer. Penso em Jeremias no século VI a.C, em Paulo, no seu tempo ("todos:.. me abandona­ram"), Atanásio no século IV e Lutero no século XVI. C. S. Lewis escreveu seu tributo a Atanásio, que sustentou a divindade de Jesus e a doutrina da Trindade, quando a igreja inteira estava decidida a seguir o herege Ário: "Sua glória é que ele não seguiu o curso da época; sua recompensa é que agora ele permanece, enquanto aquela época, como todas as épocas, já se foi."
Hoje, pois, nós estamos decididos a lutar para apresentar o evangelho de tal forma que ele fale aos dilemas, temores e frustrações do mundo moderno; estamos, no entanto, igualmente decididos a não comprometer o evangelho a fim de fazer isso. Certas pedras de tropeço são intrínsecas ao evangelho original e não podem ser eliminadas, e nem mesmo abrandadas, a fim de torná-lo mais agradável ao paladar contemporâneo. O evangelho contém certos aspec­tos tão estranhos ao pensamento moderno que ele sempre há de parecer "loucura" para os intelectuais, por mais que nos esforcemos (e com razão) para mostrar que ele é "de verdade e de bom senso". A cruz sempre há de constituir-se em uma agressão à justiça própria do homem, bem como um desafio à sua auto-indulgência. Seu "escândalo" (pedra de tropeço) simplesmente não pode ser removido. De fato, a igreja fala ao mundo com mais autenticidade, não quando ela faz adaptações vergonhosas motivadas por covardia, mas, sim, quando se nega a fazê-las; não quando ela se torna totalmente indistinta do mundo, mas quando sua luz distintiva brilha ainda mais.
Assim, os cristãos, que vivem sob a autoridade da revelação de Deus, por mais ansiosos que estejam para comunicá-la aos outros, demonstram uma resoluta inde­pendência de mente e de espírito. Não se trata de obsti­nação, pois estamos prontos para ouvir a todos. Contudo, determinamo-nos também a ser fiéis e, caso necessário, sofrer por isso. A palavra de Deus a Ezequiel é um encorajamento para nós: "Não os temas ... Tu lhes dirás as minhas palavras, quer ouçam quer deixem de ouvir, pois são rebeldes." Portanto, temos que aplicar a Palavra, mas não manipulá-la. Temos de nos esforçar o máximo possível para certificar-nos de que ela fale aos nossos dias, mas não corrigi-la a fim de garantir uma falsa relevância. Nosso chamado é para sermos fiéis e relevantes, e não simples­mente tendenciosos.
Mas como é que podemos ser conservadores e ao mesmo tempo radicais — conservadores no que tange a guardar a revelação de Deus e radicais na nossa radical aplicação desta? Como podemos desenvolver uma mente cristã que seja moldada pelas verdades do cristianismo bíblico e his­tórico e ao mesmo tempo tenha consciência das realidades do mundo contemporâneo? Como podemos relacionar a Palavra com o mundo compreendendo o mundo à luz da Palavra, e até mesmo compreendendo a Palavra à luz do mundo? Temos de começar com uma dupla recusa. Re­cusemo-nos a nos tornar, ou tão absorvidos com a Palavra que acabemos fugindo dela e deixando de confrontá-la com o mundo, ou tão absorvidos com o mundo que nos confor­memos com ele, deixando de submetê-lo ao julgamento da Palavra. Escapismo e conformismo são erros opostos, mas nenhum dos dois é uma opção cristã.
Em lugar desta dupla recusa, nós somos chamados a ouvir em dobro, ou seja, ouvir tanto a Palavra quanto o mundo. É um truísmo dizer que precisamos ouvir a Palavra de Deus, a não ser, talvez, que precisamos ouvir a ele com mais atenção e humildade, prontos para deixá-lo confron­tar-nos com uma palavra inquietante e inesperada. Menos agradável ainda é o fato de nos dizerem que nós também temos que ouvir o mundo, pois as vozes de nossos contem­porâneos podem assumir a forma de agudos e estridentes protestos. Ora elas são queixosas, ora atraentes, ora nos chegam em tons agressivos. E depois tem o grito angus­tiante daqueles que estão sofrendo, e a dor, a dúvida, a ira, a alienação e até mesmo o desespero daqueles que estão afastados de Deus. Não estou dizendo que deveríamos ouvir a Deus e aos nossos companheiros humanos da mesma forma ou com o mesmo nível de deferência. Nós ouvimos a Palavra com humilde reverência, ansiosos por entendê-la e decididos a acreditar no que viermos a compreender. Nós ouvimos o mundo com atenção crítica, igualmente ansiosos por compreendê-lo, e decididos, não necessaria­mente a crer nele e a obedecer-lhe, mas a simpatizar com ele e a buscar graça para descobrir que relação existe entre ele e o evangelho.
Todo mundo tem dificuldade de ouvir. Mas será que os cristãos são, por alguma razão (talvez por nos acreditar­mos chamados para falar aquilo que Deus falou), ouvintes piores do que os outros? Nosso símbolo é mais a língua do que o ouvido. Mas já deveríamos ter aprendido uma lição com os loquazes confortadores de Jó. Eles até que come­çaram bem. Quando ficaram sabendo dos problemas de Jó, deixaram seus lares e foram visitá-lo. E, quando chegaram, mal conseguindo reconhecê-lo, de tão desfigurado pelas feridas, eles lamentaram, rasgaram suas vestes, jogaram terra sobre as cabeças e depois sentaram-se ao seu lado no chão durante sete dias. Durante toda aquela semana eles nada disseram a Jó, pois viram quão grande era o seu sofrimento. Na verdade, ninguém disse nada, pois simples­mente não havia o que dizer. Se pelo menos eles tivessem continuado como começaram e continuado de boca calada! Mas, ao invés disso, eles puseram à mostra, da maneira mais insensível possível, a sua ortodoxia convencional de que todo pecador sofre por causa de seus próprios pecados. Na verdade, eles nem escutaram o que Jó tinha a dizer. Simplesmente ficaram ali repetindo suas conversas fiadas, sem refletir e sem nenhuma sensibilidade, até que final­mente Deus os repreendeu por não terem falado sobre ele o que era direito.
Nós conhecemos muito bem o conceito de "pensar duas vezes", uma expressão cunhada por George Orwell em seu famoso livro 1984. Ela denota a habilidade de guardar simultaneamente na mente duas visões ou convicções confli­tivas. Pensar duas vezes é uma capacidade típica de pro­pagandistas inescrupulosos. "Falar duas vezes" é ainda mais desonroso. E a capacidade de dizer algo para uma pessoa e outra coisa completamente diferente para uma outra, e até falar coisas mutuamente contraditórias para a mesma pessoa. Falar duas vezes é a reserva de mercado dos hipócritas, dos mentirosos consagrados. "Ouvir duas vezes", porém, não contém nenhum elemento de autocontradição. É a faculdade de ouvir duas vozes ao mesmo tempo, a voz de Deus através das Escrituras e as vozes de homens e mulheres ao nosso redor. Frequente­mente estas vozes contradizem uma à outra, mas nosso propósito ao ouvir tanto uma como a outra é descobrir como elas se inter-relacionam. Ouvir duas vezes é indis­pensável para o discipulado cristão e para a missão cristã. Somente através da disciplina de ouvir duas vezes é que é possível tornar-se um "cristão contemporâneo". Pois só então nós conseguimos ver que os adjetivos "histórico" e "contemporâneo" não são incompatíveis, aprendemos a aplicar a Palavra ao mundo e proclamamos boas novas que são, ao mesmo tempo, novas e verdadeiras. Em suma, passamos a viver no "hoje" à luz do "ontem".

Extraído do Livro " Ouça o Espírito, Ouça o Mundo" Link para download no Filho Varão

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Irmãos em Cristo Jesus.

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